Mitomania: quando a mentira vira compulsão
- Natalie Vanz Bettoni G. Campos
- 1 de abr. de 2021
- 4 min de leitura
Mentir é natural à natureza humana. Mas qual é a linha que, quando ultrapassada, faz de alguém um mentiroso patológico? Conheça as características, causas e tratamentos para a mitomania
As chances são de que, ao menos uma vez, você já mentiu. OK, vamos ser sinceros: você já mentiu muito mais de uma vez, e não estamos considerando só o dia 1º de abril. E tudo bem: mentir é natural à natureza humana. Seja para sair de uma situação desconfortável ou confronto, ganhar uma pequena vantagem ou não magoar alguém, a mentira é parte natural de nosso dia a dia.

O problema é quando o ato de mentir acontece de forma compulsiva, tão frequente que praticamente se transforma em estilo de vida. Uma história falsa é encoberta por outra ainda maior, iniciando um ciclo em que pequenas e grandes mentiras são contadas com confiança e naturalidade.
A dificuldade de controlar tal comportamento e a falta de razão para tê-lo (ou seja, não haver razão externa ou benefício associado à mentira) compõem o que chamamos de mitomania. Você também pode encontrá-la por aí com os nomes de pseudologia fantástica ou mentir patológico, termos frequentemente usados na literatura como sinônimos.
O que sabemos sobre a mitomania?
O mentir patológico é um tema pouco explorado pela ciência. O artigo Psychiatric aspects of normal and pathological lying, de 2016, ressalta a inexistência de estudos sistemáticos com número significativo de participantes para clarificar o conceito. O estudo da condição também é dificultado pela falta de motivação de pacientes com o transtorno para participar de tratamentos ou estudos clínicos. Assim, a condição ainda é pouco conhecida e compreendida, dificultando a assimilação de suas causas, diagnóstico e protocolos de tratamento eficientes.
Características do mentiroso patológico
São três os fatores que distinguem o mentiroso patológico:
sente dificuldade em controlar suas mentiras;
mente sem razões externas ou benefícios evidentes;
está ciente de suas mentiras, ou seja, não acredita que as mentiras que conta sejam representativas de sua realidade (neste sentido, quem sofre de transtornos psicóticos não pode ser considerado mentiroso patológico).
Assim, quem sofre de mitomania mente de forma impulsiva e obsessiva, experimenta falta de controle sobre o ato de mentir e pode até se comportar como se suas mentiras fossem realidade, mas sua crença nelas não chega a atingir nível delirante.
Causas da mitomania
Com poucos estudos sobre o tema, as causas da mitomania ainda não são claras o suficiente, mas algumas recorrências já foram observadas por pesquisadores. Uma delas é a frequente associação da mitomania a outros transtornos, como os transtornos de personalidade antissocial. Além disso, muitas vezes a compulsão por mentir aparece como sintoma em transtornos antissociais, narcisísticos e de personalidade histriônica. Na literatura, também são relatados casos de mentira patológica solo, sem comorbidades.
As teorias psicodinâmicas explicam a mitomania como forma de defesa e evitação de conteúdos desagradáveis, que provocam sofrimento e ansiedade. Também são frequentes na literatura as descrições do mentiroso compulsivo como alguém que idealiza a si mesmo em um falso self, lotado de ideias de grandiosidade e orgulho excessivo.

O falso self teria suas raízes na primeira infância, quando o indivíduo aceita como real uma versão distorcida de suas experiências. O psiquiatra e psicanalista Donald Woods Winnicott é um dos que aponta para esta possível etiologia: filhos de pais intrusivos ou envolvidos em excesso desenvolvem um falso self, que não corresponde às suas experiências internas genuínas, na tentativa de satisfazer as expectativas dos pais. Os pais também contribuem para isso quando rejeitam o verdadeiro self da criança, reconhecendo apenas o falso.
Na adolescência, o desenvolvimento do falso self é mais evidente. Como aprendeu em relações anteriores, o indivíduo oculta seu verdadeiro self para satisfazer determinados padrões e valores. Estudos apontam que adolescentes que se sentem pouco apoiados ou apoiados de forma condicional têm níveis mais altos de self falso. Ao elevarmos nosso falso self estamos diminuindo o verdadeiro, gerando sentimentos de desesperança, baixa autoestima e autoconfiança, e até mesmo a mitomania.
Apresentar um falso self não necessariamente resulta na mitomania. Quem mente patologicamente experimenta mudanças mais profundas na estrutura da personalidade e maiores déficits de ego. São as mentiras que preservam seu mundo, levando a gratificações inconscientes e servindo como defesa contra sentimentos negativos.
Tratamentos para a mentira patológica
A mitomania não é incluída como diagnóstico no DSM-5, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, e não há protocolos claros para guiar o trabalho com estes pacientes. A falta de estudos sistemáticos resulta também em carência de informações acerca do tratamento e, novamente, lembramos da dificuldade imposta pela indisposição de quem sofre de mitomania a buscar tratamento ou participar de estudos clínicos.
Apesar de tal panorama, especialistas afirmam que medidas como psicoterapia, uso de psicofármacos voltados ao controle da impulsividade e compulsividade ou uma combinação de terapia e medicamentos podem ter bons resultados. É complicado falar em "cura" da condição, mas tentativas podem ser feitas para que a pessoa adquira maior controle sobre suas mentiras e um comportamento mais aceitável socialmente.
Dicas para conviver com alguém que mente compulsivamente
Se você convive com um mentiroso patológico, a dica é não oferecer validação às suas mentiras e manter a calma, ou seja: evite ser agressivo, mas fale à pessoa que você sabe que ela está mentindo, com o objetivo de não reforçar este comportamento.
Como apresentado, são necessários mais estudos sobre a mitomania para constituir definições claras e consensuais sobre o assunto na comunidade científica. Para a escrever este texto, utilizamos como principal referência o artigo Psychiatric aspects of normal and pathological lying, publicado no International Journal of Law and Psychiatry (Q2) em 2016. Como materiais de apoio, foram utilizadas informações presentes nos links disponíveis abaixo.
Texto por Natalie Vanz Bettoni
Referências
Muzinic, L., Kozaric-Kovacic, D., & Marinic, I. (2016). Psychiatric aspects of normal and pathological lying. International Journal of Law and Psychiatry, 46, 88–93. doi:10.1016/j.ijlp.2016.02.036
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