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Jornal da Morte e os impactos do jornalismo sensacionalista na percepção da criminalidade

  • Renan Hoinski
  • 19 de abr. de 2021
  • 5 min de leitura

Jornalismo ou sensacionalismo? O que um samba de 1961 pode nos dizer sobre os programas policialescos da TV brasileira? Composição de Miguel Gustavo de 1961 denuncia jornais que se aproveitam da morte para se promover


Com a voz expressiva de Roberto Silva e um coral feminino, em 1961, no disco Descendo o Morro, Volume 4, era lançada uma música que serviria de hino para denunciar o setor da imprensa que usa o sofrimento do povo para se promover, “Jornal da Morte”. Os gritos servem para chamar a atenção e denunciar a péssima prática jornalística dos impressos da época e atualmente dos programas televisivos, principalmente os policialescos, que fazem exposição exagerada de prisões e perseguições policiais, que fazem acusações sem provas e que exaltam a violência como forma de resolução de problemas.



O jornalismo não é um espelho da realidade e seria humanamente impossível que os meios de comunicação dessem conta de comunicar todos os acontecimentos. Sendo assim, há uma necessidade de selecionar quais são os fatos que se tornarão notícia, e o problema está nos critérios utilizados para fazer esse tipo de seleção. Normalmente, são utilizados como parâmetro o impacto da noticia, interesse do público, importância do acontecimento e, claro, os interesses políticos e econômicos. É aí que mora o problema: quando falamos de cobertura policial, os apresentadores normalmente fazem um julgamento prévio da situação, sem apurar os fatos, ignora-se todo o contexto dos episódios e dos indivíduos nele envolvidos, deixando margem para inúmeros erros e violações.


De acordo com o guia de monitoramento “Violações de direitos na mídia brasileira: ferramenta prática para identificar violações de direitos no campo da comunicação de massa” (Varjão, S., 2015) foram identificadas as seguintes violações nesse setor midiático:


  1. Desrespeito à presunção de inocência;

  2. Incitação ao crime e à violência;

  3. Incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciárias;

  4. Exposição indevida de pessoa(s);

  5. Exposição indevida de família(s);

  6. Discurso de ódio e Preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional;

  7. Identificação de adolescentes em conflito com a lei;

  8. Violação do direito ao silêncio;

  9. Tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante


Se você quiser ler de quais programas e trechos cada violação dessas saiu é só acessar aqui.


O populismo penal midiático


A letra de Jornal da Morte é curta e diretiva: no trecho “Vejam só esse jornal, é o maior hospital, porta-voz do bang-bang e da polícia central” fica clara a crítica contundente ao conteúdo apresentado na época pelos jornais. A música segue com algumas estórias exageradas e sensacionalistas, como "Tresloucada, semi-nua, jogou-se do oitavo andar, porque o noivo não comprava, maconha pra ela fumar”, e encerra com um recado marcante: “Só falta alguém espremer o jornal, pra sair sangue, sangue, sangue” — ou a cobertura policial se compromete com um debate sólido e bem embasado ou então ela se compromete a tratar a violência como espetáculo, via de regra sangrento e sádico, e existe um termo para caracterizar essa prática: populismo penal midiático.


“Só falta alguém espremer o jornal, pra sair sangue, sangue, sangue”

Populismo penal midiático é quando a mídia usa discursos que não tem base científica para falar de questões penais e criminais para a população, quando os temas são tratados de uma maneira a causar sentimentalismos, como o pânico e medo. Mas estes são discursos que de fato não dialogam com nada no campo da ciência penal, e que muitas vezes vão contra os princípios constitucionais, como por exemplo casos onde o apresentador sustenta que o indivíduo que supostamente cometeu um crime deveria morrer, infringindo o Art. 5º, inciso XLVII da constituição.


Art. 5º, XLVII – não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de

guerra declarada, nos termos

do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis.


Tal discurso midiático cria uma lógica de pensar segurança pública muito errônea, onde se deve ter medo de tudo e não se deve discutir nada, apenas julgar. E esse medo é principalmente da “bandidagem”, lhe é passada a impressão de que a qualquer momento você pode ser roubado, violentado ou morto. Esses programas policialescos podem até se dizer jornalísticos, mas eles não informam nada, na verdade eles acabam por diminuir a sensibilidade das pessoas com a morte, dor e sofrimento alheio, e talvez seja essa mesma a ideia por trás deles.


Tal discurso midiático cria uma lógica onde se deve ter medo de tudo e não se deve discutir nada, apenas julgar.

Quando comentei acima que os critérios para seleção do que é noticiado podem ser políticos e econômicos, podemos pensar em quem normalmente sai no noticiário como criminosos: pessoas pobres, negras, com baixa instrução escolar e moradoras de favelas de todo o Brasil. É próprio desse gênero uma postura agressiva do apresentador: se o fato é “um homem foi preso por roubo”, na narrativa deles se transforma em “um bandido, safado, marginal foi preso, porque era um vagabundo, que não trabalhava”, fazendo todo um julgamento sem análise dos fatos, e sem ter ocorrido um processo condenatório, ofendendo outro princípio constitucional, o de presunção de inocência, art. 5º, incisos LIII e LVII.


Art. 5º, LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.

Art. 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.


Samba de 1961 ainda se mostra extremamente atual em suas críticas ao sensacionalismo da TV policial brasileira.

Alguns dos artifícios e consequências dos programas policiais sensacionalistas


O populismo penal midiático é um fenômeno que pode ser analisado a partir de múltiplas perspectivas. Aqui queremos destacar o ponto de vista da Psicologia, mais especificamente através das lentes da Psicologia Social e da Análise do Comportamento.


As mídias são controladas por um determinado público, que escolhe o que vai ser noticiado e como isso vai ser noticiado. Talvez o “bangue-bangue” que está sendo travado seja entre as pessoas em situação de vulnerabilidade social e as pessoas que assistem e se identificam com as demandas do apresentador, uma demanda de eliminação de determinados indivíduos, escolhidos com muito cuidado.


Não por acaso muitas vezes esses programas intercalam cenas horríveis e discursos de ódio com momentos cômicos, onde são feitas piadas e o apresentador se diverte, numa possível tentativa de emparelhamento comportamental. Emparelhar significa dispor estímulos diferentes para adquirir respostas similares: nesse caso, as cenas de violência associadas à momentos cômicos podem despertar nos telespectadores a sensação de felicidade ou alegria ao ver situações de violência, sendo criado assim um estímulo condicionado.


Além disso, a exposição a esses conteúdos pode acabar criando uma dessensibilização sobre os temas de morte e violência, naturalizando isso. Por outro lado, aumentam os sentimentos de medo e pânico de uma suposta criminalidade que está em todo lugar.


O branco pego vendendo substâncias ilícitas é “vendedor”, enquanto o negro é “traficante”.

Pode ocorrer também um reforço de estereótipos, já que as pessoas apresentadas como ladrões, bandidos e traficantes normalmente são homens, jovens e negros, mas sabemos que não são só essas pessoas que cometem crimes, né? Um político branco corrupto ou um empresário que sonega impostos normalmente não é apontado como tendo a “cara de bandido”. O exemplo clássico é quando um branco pego vendendo substâncias ilícitas é “vendedor”, enquanto o negro é “traficante”. A criminalidade é associada a corpos negros e favelados, e as pessoas introjetam essas informações.



Sugestão legislativa sobre o assunto tramita no Senado


Está em tramitação no Senado sugestão legislativa (SUG 24/2020) que visa proibir a exibição de programas policiais “sensacionalistas” pela televisão aberta. Confira as informações sobre a sugestão, disponibilizadas no portal de notícias do Senado:


“A ideia foi encaminhada por meio do portal e-Cidadania e enviada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH). Apresentada pelo internauta Jonas Rafael Rossato, a sugestão recebeu 22.038 mil assinaturas no período de três meses.

O objetivo da medida é proibir a exibição desse tipo de programa das 6h às 22h. A sugestão ressalta que as empresas de televisão podem elaborar produções com outros conteúdos, mas para aumentar audiência dos telespectadores insistem em “recorrer a programas que espalham notícias violentas sob pretexto de informar”, justifica Jonas.

De acordo com o autor, os apresentadores de programas sensacionalistas propagam discursos especulativos e agressivos.”


"A exibição de programas violentos no horário livre faz com que crianças e adolescentes possam assistir a acidentes, assassinatos, sangue, perseguições e diversas outras atitudes consideradas proibidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA”, destaca Rossato em seu texto



Texto por Renan Hoinski

Revisão por Natalie Vanz Bettoni

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